Ecos históricos-civilizatórios-ocidentais da Rapsódia I da Odisseia de
Homero.
Jean Baudrillard lembra
Apollinaire: “Quando falo do tempo ele já não mais é” para realizar sua crítica
a Foucault, que segundo ele, fala do poder, da sexualidade, etc. com uma
inteligência definitiva, ao que ele conclui que se ele pode falar assim é
porque “tudo isso está desde já ultrapassado”. Cabe então a pergunta: pode-se
estender tal preceito para tudo o mais, como por exemplo, às questões
filosóficas? Afirmar o que seja a respeito do que seja de forma definitiva é
porque tal coisa encontra-se ultrapassada? Com uma resposta afirmativa pode-se
concluir então que nada pode ser dito do que já não esteja fora de contexto,
não exista mais. Ainda tem sentido se preocupar com a sentença de Anaximandro?
Com a questão do Ser e do Vir-a-Ser? E tantas outras possibilidades filosóficas
que, uma vez enumeradas podem até impressionar pela extensividade. Cada um se envereda por um longo caminho e depois de
muito andar e pensar como que se perde dentro de si mesmo. Com a filosofia da
linguagem acontece de forma análoga o oposto: diversos pensadores que se perdem
no seu labirinto. São inúmeras as encruzilhadas e caminhos alternativos. Numa
coisa acredito que haja consenso: quem quer ir para frente deve voltar para
trás. Principalmente quando a direção é ainda incerta. Começar pelo início quem
sabe permita vislumbrar o caminho novo, que talvez possa ser o seu idiossincrático caminho. Homero na rapsódia I da Odisseia narra a fala, aos
imortais, do pai dos homens e dos deuses: Zeus Olímpico: “Ah!, de que maneira os mortais censuram os deuses! A dar-lhes ouvidos,
de nós provém todos os males, quando afinal, por sua insensatez, e contra
vontade do destino, são eles os autores de suas desgraças.” Podemos tomar
como exemplo o prudente Telêmaco que se dirigindo a Atena, a deusa de olhos
brilhantes, ao comentar sobre o destino de seu pai Ulisses diz: “(...) os deuses que nos querem mal”
expressa a ideia de que determinados deuses nos querem bem e outros nos querem
mal. Diferente da nossa maneira monoteísta que gerou tanta discussão sobre a
questão de como pode o nosso Deus que é bom deixar tantos males acontecerem
aqui no nosso humilde planeta Terra. A
ideia de que os deuses são culpados pelos nossos atos considerados bons ou não: os deuses é que eram os culpados por todos os nossos atos
principalmente os considerados como errados e inaceitáveis, oriundos de nossas
fraquezas, ou seja, nossas fraquezas são oriundas de uma dinastia de deuses, de
determinados imortais. Nietzsche ressaltou
a diferença que existe entre atribuir aos deuses nossos atos considerados sem
virtude, sem fé como algo mais aceitável, e aceitar ou acreditar num único deus
justiceiro e castrador, juiz de todos os nossos atos. A primeira fala de Atena,
a deusa de olhos brilhantes nos remete à origem da norma, da lei. Por mais que
isso tenha demorado a se concretizar a ideia já estava ali. Na medida em que a
deusa considera justo o castigo dado a Egisto por ter desposado a mulher do
Atrida que assassinou em seguida, desejando que “morra como ele todo aquele que praticar crimes da mesma espécie!”
como que inaugura uma regra, uma norma, uma lei. Para tal ato tal procedimento:
para um ato reprovável um castigo. Uma deusa que se preocupa em normatizar
posturas para os deuses diante de atos dos mortais. Onde foi essa ideia
frutificar? Para o bem ou para o mal, ou ainda melhor para além do bem e do mal,
como queria Nietzsche? A ideia do deus castrador, juiz avaliador dos atos
humanos, e sentenciador de males diversos como castigos para os nossos atos considerados
censuráveis, posteriormente os nossos pecados. Indo ainda mais longe: talvez nossos
pecados mortais. A valorização dos bons modos, tal como “boca fechada não entra
mosquito”, pode ser encontrada mais ou menos nesse momento da narração, quando
Zeus, amontoador de nuvens, filho de Cronos, majestade suprema responde à sua
filha Atena, a deusa de olhos brilhantes: “minha
filha, que palavra (que seria preferível reter) te escapou da barreira dos
dentes?”. Quem fala de mais dá bom dia aos cavalos. Fala pelos cotovelos e perde
a credibilidade torna-se o mentiroso. Da mesma forma pode-se inferir um modelo
de velhice aceitável e apetecível no retrucar do prudente Telêmaco filho de
Ulisses: “feliz mortal que chegasse à
velhice na plena posse de seus bens.” Penso que posse aqui não significa
registro de imóveis, mas muito mais as condições fisiológicas e psicológicas de
estar de posse do que é seu por direito. Tanto quanto dizem respeito às
relações humanas quanto aos bens materiais necessários ao bem viver. Interessa
a ideia de Zeus, filho de Cronos, dominador supremo como produtor de rumores
que disseminam as notícias entre os homens, na medida em que seja permitida uma
relação com a ideia de Deus se revelando aos homens, como no velho testamento.
A diferença está em que para os deuses significava influir, dando conselhos,
mudando o curso da vida dos mortais, fazendo parte de suas vidas, estabelecendo,
com eles, dialogo o tempo todo. A revelação de Deus para com seus escolhidos
como Abraão, Moises era ora de forma direta ora de forma indireta, através de
nuvens, anjos e outras formas de materialização da sua voz, com a preocupação
primeira de se fazer acreditar enquanto Deus que existe para em seguida se
fazer ouvir como Deus que dirige o destino dos mortais humanos. Parece que
provém dos deuses também o chamado para a responsabilidade do adulto em relação
à criança; a passagem, a iniciação que, sob diversas formas, está presente nas mais
diversas sociedades independentemente se consideradas como primitivas ou como
sociedades complexas, quando Atena, a deusa de olhos brilhantes aconselha a
Telêmaco, filho do divino Odisseu: “Põe
de lado os divertimentos infantis, que já não tens idade para isso (...) sê
corajoso, para que teus descendentes mais remotos te louvem”. Em um dos
diálogos de Telêmaco com os pretendentes de sua sensata mãe Penélope, filha de
Icário ocorre a ideia de valorizar o poder que implicaria necessariamente em fartura
e honra: “Reinar não é um mal; imediatamente a casa do rei se torna opulenta e
ele passa a ser mais honrado.” Quantos desdobramentos históricos labirínticos
surgiram dessa ideia raiz? Basta citar
todas as situações onde influíram e influem as monarquias, teorias e mais
teorias sobre o poder, por exemplo, Foucault, o discurso da servidão voluntaria
de Etienne de La Boétie, e tantas outras situações
e exemplos, ad infinitum! Para
finalizar: alguma relação entre ajoelhar-se em determinados momentos de rezas e
cultos religiosos e a expressão: “esse
porvir repousa sobre os joelhos dos deuses”? Em fim, que importância tem
toda esta lorota? Nenhuma, pois não passa de mais uma prosopopeia!