Prosopopeia XIV: Ainda
Nietzsche...
Já coloquei óculos escuros
em Marx e pensei que visão teria ele daquele hoje (início da década de 80). Agora
não colocaria óculos escuros em Nietzsche, mas óculos de grau bem forte, para
confirmar que o que ele está enxergando é mesmo o que se apresenta para ser inferido
através do olhar. Nietzsche é ouvido e compreendido diferentemente da época em que
estava vivo e disso reclamava (Ecce Homo). Dedicou boa parte de sua vida a um empreendimento
que lhe exigiu coragem: valorizar a vida de forma incontestável e à custa de
polemizar com os valores estabelecidos pela maioria em sociedade. Ser contra
tudo que atrapalhe o livre viver, seja tal coisa o que for: religião, moral,
filosofia, cultura, educação, e até mesmo deus (deus e não Deus, ou seja, o
deus que o homem criou para que fossem possíveis as religiões, o deus que fica
de fora de nós, que existe para nos vigiar e punir. Que presta um desserviço à
sua própria criação – cria-se uma criatura para viver e depois inibe ao máximo
essa possibilidade. Que contradição é essa?) simplesmente dar o devido valor
que à vida deve ser dado. Envolvendo o
que de mais central e profundo pode o ser humano. Isto traduzido em filologia,
filosofia, psicologia, cultura, educação, religião, Deus, deus e deuses,
comportamento moral, bem e mal, bom e mau, revalorização dos valores. Incompreendido
naquilo que importa muitos inimigos surgiram denegrindo sua pessoa e obra. Porém,
não adianta querer encobrir o sol com a peneira. Mais cedo ou mais tarde os
raios de sol chegam ao solo pronto para que possa ser germinada a semente do
novo, do novo homem, da nova sociedade, dos novos valores, que sejam valores de
verdade ou que não exista mais nenhum. Que seja extirpada da face desse
pretensioso astro algumas de suas ervas daninhas. Que lhes sejam dadas uma dose
mortal de Roundup ou Randap.
Nietzsche, o randap de toda erva daninha que nega a vida, que nega o otimismo,
contra todo pessimismo, contra todo deixar para viver depois, contra toda moral
castradora e inibidora das possibilidades de vida, das vontades, do eu quero,
por que não? Leio Nietzsche desde que me preparava para fazer vestibular em São
Paulo. Lembro-me de que eu cheguei a achar que Nietzsche era um egocêntrico
louco, ao ler Ecce Homo. No entanto, foi o primeiro filósofo que comecei a
entender alguma coisa do que estava falando em sua obra. Acredito hoje que eu
apenas pensei que estava entendendo algo. Na verdade eu pegava algumas de suas
ideias e aplicava-as a estratégias didáticas. Por exemplo: a sua ideia “como o
homem tem necessidade de ilusões para poder viver”, foi uma que utilizei muito.
A questão girava entorno do significado da palavra ilusão. Não sei se seria a
melhor tradução essa palavra para o que Nietzsche queria expressar, que na
verdade era muito mais como o homem tem necessidade de falsificações, mentiras
mesmo para manter a preservação da espécie. A escolha da palavra ilusão para
substituir a palavra mentira é uma escolha muito bem feita, uma vez que produz
várias ilusões na cabeça de quem lê e não tem iniciação suficiente para
discernir tal fato. Mas o que importa é que, na medida em que fui lendo e
relendo Nietzsche, pude ir percebendo que ele tratou das mesmas mensagens que
tentava disseminar em diversos momentos neste seu trabalho de se fazer por
entender. A incompreensão sobre suas ideias publicadas lhe fez tomar talvez
essa atitude: escrever de novo a mesma coisa com palavras, frases, parágrafos
diferentes, como se quisesse, didaticamente, oferecer uma tradução de suas
próprias ideias. Ele sempre reclamou de que não tinha “amigos” para conversar.
Ele conversava com ele mesmo ou criava interlocutores imaginários, como por
exemplo, os espíritos livres. Não tinha outra saída. Em vários momentos de sua
obra ele fala dessa inexistência de com quem dialogar, aqueles que pudessem
discutir com ele suas ideias. Em Esse Homo ao falar do seu livro Para além do
bem e do mal ele se refere ao seu trabalho de encontrar “individualidades
transbordantes de energia” que pudessem ser fisgadas pelo seu anzol, como ele
próprio diz: “a partir de então todas as minhas obras assemelham-se a anzóis
(...).” e finaliza dizendo que se a isca não foi abocanhada que a culpa não era
sua: “não havia peixe...”. Fico impressionado como em todo o momento na sua
obra a gente se depara com ideias que logo se transformam em obras de futuros
autores de renome mundial. Para aproveitar que estamos com Esse Homo aberto na
abordagem de Para além do bem e do mal, quando afirma que esta sua obra é em
essência uma crítica da modernidade e que indica “um tipo oposto, muito mais
que moderno, um tipo nobre, afirmativo.” Vejo aí a origem de todas as implicações
acadêmicas, teóricas etc. do rotulado pós-modernismo e coisas afins. Muitos
outros exemplos podem ser dali retirado, é só seguir os diversos autores que
tem e que tiveram em Nietzsche uma referência para a produção de suas próprias
obras. Para citar alguns exemplos claros: Foucault, e a ideia de que o poder é
algo como que omnipresente, ou seja, perpassa tudo numa visão de que todas as
coisas da natureza tendem para um mesmo princípio ativo de busca por um aumento
de sua própria potência, cada vez mais poder. Sem sombra de dúvida é uma ideia
central em Nietzsche: a vontade de potência. Talvez fosse interessante começar
por ela, não sei. Em que obra de Nietzsche aparece pela primeira vez essa
ideia? Quantas vezes ela ocorre em sua obra? Como uma análise do formato dado
em cada uma delas pode realizar essa tradução de Nietzsche por Nietzsche? Que
outras ideias poderiam ser analisadas da mesma forma? Será possível determinar
com segurança quantas ideias são centrais no seu Pensamento, na sua Obra? Vejamos
alguns exemplos: seu primeiro problema foi a respeito do bem e do mal, ou seja,
moral. Não sei se encontraremos problemas tratados por Nietzsche que não tenham
alguma relação com moral. Outra questão é a da verdade, que diretamente remete
às suas abordagens sobre o filósofo e à filosofia, e que não se separa logicamente
da mentira, das ilusões aludidas acima. A vontade da verdade (na parte Os
preconceitos dos Filósofos) qual a sua origem? Foi sua primeira pergunta para
em seguida perguntar: qual o valor dessa vontade? O problema da validade do
verdadeiro. Sócrates: a razão em detrimento do instinto. A arte e a música
também sempre estiveram presentes em Nietzsche. Aqui cabe um Lulu Santos: “se é
loucura então, melhor não ter razão”? Mas sua grande polêmica talvez seja a
questão da morte de Deus. Porém isso me faz pensar algumas coisas. Afinal, qual
o significado dessa ideia em Nietzsche? Gostaria de dar uma opinião dentro de
mais essa prosopopeia. Como vou viver sem deus? Caramba... Mas, espera aí?! Que
história ou estória é essa? Afinal deus morre? Parece que isso depende da
religião considerada. Em algumas delas deus se é mesmo Deus com “D” maiúsculo
tem como um de seus atributos a eternidade. Será que Nietzsche descobriu a
morte de um deus ou de Deus? Em minha
opinião, o deus que Nietzsche encontrou morto foi o deus-ideal, enquanto conceito, ideia sem o qual ficam difíceis
certos momentos da vida. Para Nietzche “o mais elevado não pode
proceder do mais baixo, nem pode vir pelo geral (...) tudo que é de primeira
ordem deve ser causa sui (...) todos
os conceitos superiores, o ser, o absoluto, o bem, a verdade, a perfeição, tudo
isso não pode vir a ser (...) assim é a forma como chegam ao seu conceito de
Deus.” Parece
que a ideia, o conceito de deus nos remete a uma psicologia, na qual os
momentos difíceis da vida ficam menos difíceis, com essa ideia de que em algum
lugar e neste tempo existe algo que é mais do que eu sou, e que, portanto, pode
me fazer bem, pode me ajudar a superar os obstáculos da minha vida. Assim,
adquirimos uma força suplementar para
superação desses obstáculos. Essa força é como se estivéssemos segurando a mão
de Deus, ou que Deus estivesse segurando a nossa mão, e nos conduzindo para o
melhor caminho. Não deixa de ser uma forma de terceirização da responsabilidade. Transfiro a responsabilidade
para deus e fico mais tranquilo para continuar ou tentar/lutar para continuar
caminhando. Qual o melhor caminho? A escolha implica uma vontade, que mostra os
valores de quem escolhe. Viver de que forma? Não viver é no mínimo burrice,
como é da mesma forma, deixar para viver depois. Quem disse que existirá depois na nossa condição humana marcada
pela morte? Quando a respiração é interrompida não existe mais depois no
caminho que vinha sendo traçado. A vida é interrompida, finalizada, como dizia
o comediante: morreeeu. Aí já não é
mais possível escolher. A vontade de ser, de viver, sentir, saborear isto ou
aquilo não tem mais como se realizar. Isto nos remete ao fato de que já que tal
situação certamente ocorrerá no meu depois, que valor vou dar para minha
capacidade de escolha que ainda me resta? Que vontades eu tenho para saciar? Tenho um depois pelo menos por enquanto,
então posso escolher segundo minhas vontades. De uma coisa estou certo: a
escolha de viver com deus ou sem deus
depende de como esse deus ajuda ou atrapalha na satisfação de minhas vontades:
se existe um deus que tolhe minhas realizações na satisfação das vontades de
minha vida é melhor que ele morra, que esteja morto e que não deveria nem ter
nascido. Tenho ou não que pensar assim? Estou vivo então tenho diante de mim a
alternativa de escolher viver dessa ou daquela forma. Se um deus se coloca entre
mim e minhas realizações, o quero bem mortinho. Egoísmo? _Não, escolha de uma
vontade de vida! Pecado? Muito menos. Que limites considerar na escolha da
maneira de viver? Moralmente? Eticamente? Religiosamente? Fica a critério de
cada um. O que importa nesta história toda é que para mim ainda faz sentido a
ideia de Deus me ajudando a viver, por uma coisa muito simples: os sinais que
Deus nos remete o tempo todo... Mas que importa tudo isso afinal? Tudo não
passa de prosopopeia... ainda bem!!!