quarta-feira, 18 de julho de 2012

O arrasta pé do repe- rrepe que nem de música precisa.


O arrasta pé do repe-rrepe.
Próximo ao rancho, que ficava perto do morro do “Chiquinho”, tinha a sede de uma fazenda cujo dono tinha algumas filhas solteiras. Elas trabalhavam o dia todo na roça ficando avermelhadas do sol e pretas do carvão. Um dia uma delas veio nos convidar para a “dança” que ia ter lá na casa dela. Estávamos todos bem perto da fornalha, provando alguma coisa e bebendo algo para esquentar um pouco e, é claro, com o companheiro de sempre, o violão.
“Aqui nóis dança quase todo dia. Sábado que vem vai ter dança lá em casa. Por que ocêis num vão também? Afinal é aqui do lado, uai. Vai ser escurecendo...”.  
O resto dos dias até o esperado sábado não demorou muito a passar. Também a nossa tarefa estava bem pesada. Precisávamos terminar o rancho o mais rápido possível para podermos passar para o trabalho de preparar a terra e plantar o café. Já no sábado à tarde eu sempre dava uma olhadela na direção da casa onde ia ter a dança para sentir a movimentação.
Chegamos já escurecendo. O horizonte estava avermelhado anunciando um friozinho. Apesar disto a noite prometia ser agradável. O gravador de fita estava roncando mais que tocando a música que era um animado forró. Ninguém estava incomodado com isso. A sala da casa estava que não cabia mais ninguém. Alguns poucos mais tímidos estavam sentados, a maioria, no entanto estava literalmente arrastando o pé no chão batido, que exalava uma poeirinha quase invisível. A animação era contagiante. A ordem geral era não parar de dançar. Não tendo cavalheiro vai dama. Não tendo dama vai cavalheiro. Não tendo nenhum dos dois dança-se sozinho mesmo. De repente a fita embucha no toca fita portátil. Um dos filhos do dono da casa corre com ele para o quarto do lado da sala e começa a desmontá-lo. Logo só se vê um monte de peças sobre a cama. Fui lá prá ver e desanimei. Tirar as peças do lugar é fácil, difícil é encaixá-las de novo no lugar onde estavam. O “técnico” não fazia a menor idéia de como fazer isso. O que ele sabia mesmo é que no canto debaixo de uma das camas tinha um garrafão de pinga da boa, que o pai dele nem sonhava que existia.
“Ôu’, pega uma lá prô cê... é da boa. Fica vigiando aí ‘Ôu’, que o Pai não pode vê se não ele joga tudo fora, uai! Pode pegá lá e põe uma prá mim tamém.”
A danada da pinga era boa mesmo. Na sala estava todo mundo como encontramos na chegada – arrastando o pé e relando o bucho. A música agora vinha do opala branco parado em frente da casa. O som lá fora e o baile aqui dentro! De vez em quando se via alguém entrando meio furtivamente no quarto aparentemente para olhar se o gravador tinha conserto. Com certeza não tinha, no entanto, a cada momento aparecia um animado para dar uma boa olhada nele. Isso foi boa parte da noite, até que o dono da casa desconfiou daquele entra e sai no quarto onde jazia inerte um monte de peças do tijolo Aiko, junto da sua capa de couro preta com a alça que permitia colocá-lo a tira colo.
“Mais que negócio é esse que ocêis num para de entrar nesse quarto? Consertando o gravador até agora? Tem música já, afinal que que isso hem???”
Acabou de falar já entrando no quarto e revirando embaixo das camas.
“Ahhhh! Eu sabia que era a danada da marvada que num tem jeito mesmo! Ô Véia, vem vê o guardado aqui! (Essa senhora era conhecida como Maria-rádio, pois começava a conversar com as visitas desde que eles passavam pela porteira que dá acesso à varanda da frente da casa. O único problema é que a porteira ficava a mais de 500 m, o que impedia a possibilidade da conversa, mas isso para ela não era problema. Então o que acontecia é que a conversa já estava bem adiantada quando na varada a visita chegava. E também nada adiantaria se não estivesse, pois só ela é que falava mesmo. Ela não dava nenhuma chance para alguém abrir a boca. Diante de qualquer ameaça acelerava a prosa e aumentava o volume. Só parava quando a visita estava de novo na porteira para ir embora. Será isso um tipo de doença?).
Mas, voltando para a “marvada” da cachaça, o garrafão que estava pouco abaixo da metade estava prestes a chegar até a pia da cozinha para ser completamente esvaziado. Três companheiros da turma foram tentar salvar a embriaguês total da pia da cozinha. Afinal era cerca de dois litros e meio. Conseguiram depois de explicar que a pinga era de um deles e que ele prometia esconder no mato, para levar para casa quando fosse embora.
“Então prá acabar com essa história dá um jeito de escondê essa coisa lá fora no mato de jeito que só o Sinhô sabe aonde tá, prá num dá pobrema, que eu já desacasuei com essa coisa que deixa todo mundo doido de briga, sem sabê porquê... Inté otro dia o fato com as tripas do Zeca foi liberado pela pexera do Quim. Esse tal no outro dia num lembrava de nada e cedo passô na casa do seu companheiro de lida, o Zeca, e não é que deparô com ele com as canela esticada de terno e já acomodado dentro do madeirame.”
Mais do que depressa o garrafão foi escondido numa moita perto da varanda da entrada da casa. Resolvido o problema voltou todo mundo para o arrasta pé. E agora mais animado do que nunca. A maioria já estava com o tanque cheio, sendo que alguns estavam prá trasbordar combustível. Mesmo assim, não demorou muito e agora a oficina para consertar o gravador era na moita onde estava a “marvada”. Só que agora não era mais oficina e sim mictório. Nunca se viu tanta vontade de ir tirar a água do joelho naquelas proximidades.
A fita que tocava no opala branco não demorou muito começou a rodar cada vez mais devagar, alterando a rotação e tornando a voz do cantor cada vez mais rouca e lenta...  Até que parou de vez.
“É a bateria... vou ligar o carro e logo tá resolvido”, falou animado a dar um jeito o dono do opala.
Quem disse que o danado do opala pegou. A bateria tinha arriado de vez.
“Vamo empurrá que pega... é só virá e embicá prá li ó, descendo o morro.”
Fizemos uma força danada concordando com a ideia do dono do carro. Empurramos e soltamos morro abaixo.
“Vai, agora... vai sô. Põe segunda e solta a embreagem e liga a chave...”
E quando a chave estava ligada e a segunda engatada o opala já estava parado bem no final do morro que não era muito longo. Não adiantava soltar. Agora é que levou a breca. O opala encalhado no meio de dois morros: um que podia ser visto pelo parabrisas e o outro pelo retrovisor.
“Vamu empurrá prá cima e soltá de novo...” Gritou o dono do opala lá de baixo fazendo pose com o braço apoiado na janela do motorista.
 “Cê tá é brincando né? Já tô todo suado, oia qui ó?” Reclamou um da turma que arrematou: “Nóis num dá conta de jeito nenhum não...”
“E a junta de boi? Alguém vai buscá...” Insistiu mais uma vez o motorista do opala.
“Cê tá é doido, home. Larga isso aí, que amanhã a gente dá um jeito”.
O opala ficou no mesmo lugar estatelando no sol por cerca de uma semana atrapalhando a passagem. Teve que ser empurrado prá um lado prá abrir caminho, o que não foi suficiente. A enxada teve que comer barranco para o leiteiro passar, mas mesmo assim não deu certo. Por uns três dias o caminhão chegou até o opala e voltou de ré até a porteira onde conseguia espaço suficiente para virar.
O fato é que quando entrei na sala novamente custei a acreditar no que vi. O baile continuava sem música. Todo mundo dançando no ritmo do som do repe-rrepe, repe-rrepe dos pés no chão batido. Durante um bom tempo continuou assim. Até que todo mundo foi se despedindo e indo embora mais ou menos ao mesmo tempo.
“Vai tê dança amanhã?”
Perguntava um de cada vez quando ia se despedindo. O dono da casa ficou cansado de dar a mesma resposta por várias vezes.
“Não! Amanhã vai tê é reza. Tão tudo convidado. E se océis quizé já pode ir adiantano e já poder trazê as prendas pru leilão de domingo que vem na a Igreja de Nossa Senhora. Vai sê depois da missa...”.
Os moradores do Trêis Capão naquela época estavam fazendo uma campanha para mudar o nome do povoado para Senhora da Serra.
O horizonte avermelhado há muito tinha dado passagem para uma lua quase cheia. Aos poucos os moradores daquele sertão estavam todos bem acomodados debaixo das cobertas, repondo as energias para o domingo que não demoraria a raiar. Ainda bem que ele permitia ficar mais um pouco na cama pela manhã.

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